O PANDEMÔNIO DA PANDEMIA

Paulo Afonso Linhares

Uma preocupação inicial: se alguém deu esse mesmo título a um texto ou mesmo o mencionou, juro que não li em canto nenhum, embora admita que possa ter ocorrido comigo aquele fenômeno que o pensador russo Mikhail Mikhailovch Baktin denomina como “polifonia” que, na literatura, significa a intertextualidade de outras obras dentro de uma, para lhe dar sentido. Para ser mais didático, ao escrever um artigo de jornal ou uma obra de ficção, o autor pode inconscientemente incorporar categorias criadas em obras que já leu sem, contudo, cometer o pecado capital do reles plágio. É o intertexto do mago Baktin.

Em suma, pode até alguém já ter feito a associação dessas coisas, pandemônio e pandemia, mas, é difícil encontrá-la no enorme leito de informações da Web. Enfim, um bom título, por isso é impossível não duvidar da sua originalidade. Usá-lo-ei, com a licença dos dialetos leitores.

Vale aqui uma singela digressão acerca do sentimento das pessoas diante da letalidade de uma peste mundial, típica pandemia, para a qual todos os recursos da ciência, preventivos ou curativos, até agora se fizeram precários.

De princípio, na memória da Caraúbas da infância a festa do padroeiro São Sebastião, na segunda dezena dos meses de janeiro, que trazia de volta todos os caraubenses dispersos por este mundão de Brasil. As festas profanas, os parques de diversões com suas divulgadoras alcoviteiras, os bailes, as feiras, de tudo havia, mas, principalmente, a agenda religiosa, com as missas, novenas e procissões, que mais atraíam a todos, sobretudo, a grande procissão final, nas tardes dos vinte de janeiro. O hino de São Sebastião era devidamente cantado pela multidão: “Oh Mártir de Cristo oh meu Santo varão/ Livrai-nos da Peste São Sebastião (…).” Este segundo verso sempre me intrigou. Peste? Que peste? Que é uma peste?

Peste. Algo abstrato e até desprovido de qualquer significância para um menino que, no máximo, conhecia gripes bestas, caxumba ou papeira (parotidite epidêmica), coqueluche (ou “tosse barba”), catapora (nome popular da doença infecciosa conhecida como varicela), sarampo, rubéola (ou sarampo alemão), todas doenças infantis com baixa morbidade, curada com desejosas doses Guaraná e bolacha “cream cracker”.

Alguns casos poderiam ter complicações, em especial quando algumas regras não eram observadas, quase sempre a quebra do imprescindível repouso: o inchaço das glândulas parótidas (ou salivares) poderiam descer para as glândulas testiculares causando uma inflamação, conhecida como Orquite, que destrói o epitélio germinativo dos testiculos e causa permanente infertilidade masculina. Em linguagem sertaneja: se a caxumba desce para o saco, a ‘caba’ não faz meninas nem meninos. Nas mulheres, embora com raridade, essa inflamação atinge os ovários, com graves sequelas.

Em suma, foi preciso, para saber o que era a “peste” mencionada no hino de São Sebastião, compulsar obras de historiadores do porte de Césare Cantù (Historia Universal), de Will Durant e sua esposa Ariel (História da Civilização), sobre a Peste Negra ocorrida na Eurásia no século XIV (75 a 200 milhões de mortos). Já naquela época, entre 1347 e 1351, na Europa, as pessoas usavam roupas fantasmagóricas e máscaras de couro que pareciam a cabeça de um pássaro de enormes bicos, certamente ancestral das máscaras utilizadas agora. As péssimas condições de higiene e as dificuldades de isolamento social fez da Peste Negra eurasiana a pior pandemia da História, agora rivalizada pela da Covid-19. Útil para compreender o fenômeno, também, foi a leitura do romance A Peste, de Albert Camus. Imagens fortíssimas e inesquecíveis.

Para a abordagem do tema, é de mister demarcar que a pandemia da Covid-19, posto que tenha como impacto principal uma gravíssima crise sanitária mundial, são inequívocos, também, os seus reflexos econômicos, culturais e políticos, até capazes de estabelecer uma nova ordem mundial em bases jamais imaginadas. Sobretudo, essa terrível pandemia implodiu todos os paradigmas assentados nos últimos três séculos de cultura nos diversos quadrantes no planeta. Certo é que nada escapa ao indefectível ferrão da Covid-19, a não ser a indigesta – e não menos imprescindível -opção do chamado isolamento social e do uso de rigorosas medidas sanitárias que reduzem o perigoso contágio da doença que, entretanto, reduzem todas as atividade individuais e coletivas das pessoas, à exceção daqueles grupos que obrigatoriamente têm que permanecer em circulação e correm enormes riscos de sucumbir a essa avassaladora praga (pessoas que trabalham nas atividades sanitárias e hospitalares, agentes de segurança e trabalhadores envolvidos em atividades econômicas essenciais).

De todas as grandes pandemias conhecidas neste planeta, nos últimos cinco milênios, nenhuma tem sido tão globalmente e de contágio assustadoramente fácil e rápido como o da Covid-19. O mais terrível é que o conhecimento acumulado da medicina, aliado a poderosos fatores científicos, tecnológicos e materiais, têm sido insuficientes para o enfrentamento seguro e de eficientes resultados. Triste é perceber que, mesmo nas economias mais pujantes, cultural e cientificamente mais avançadas, as pessoas tateiam na busca de tratamentos e drogas mais eficazes ou na tão almejada descoberta de uma vacina.

Curioso é que nos países de economias desenvolvidas cujos governos e dirigentes desdenharam da letalidade da Covid-19 (Estados Unidos da América, Itália, Suécia, Brasil, entre outros), estão a pagar um altíssimo preço em vidas perdidas e em enormes perdas materiais (no Brasil a produção industrial decresceu 18,8% – a maior desde 2002, quando começou a ser aferida -, impondo uma perda de mais de 200 mil empregos, só no mês de abril/2020).

Ao revés, países pequenos e de economias frágeis, alguns vizinhos do Brasil, que precocemente adotaram rígidas políticas de isolamento social, têm obtido excelentes resultados: (Paraguai, com 1.013 contaminados, 498 recuperados e apenas 11 mortes, enquanto o quase vizinho Estado de Santa Catarina, com a mesma população de 7,2 milhões de habitantes, apresenta 9.498 infectados e 146 mortos; Uruguai, com 826 contaminados, 691 recuperados  e 23 mortes, enquanto o Rio Grande do Norte, com idêntica população mostra 9.194 contaminados com 367 mortes, menos de 10% portanto; Cuba, com  2.107 contaminados, 1.830 recuperados e 83 mortes, enquanto o Rio Grande do Sul, de idêntica população tem 10.398 contaminados com 258   mortes e  7.897 recuperados, merecendo ressaltar que este Estado é o que apresenta melhores indicadores nesse combate à Covid-19 no Brasil). Os números são recentíssimos. E estonteantes as comparações.

Um destaque merece ser trazido: os paupérrimos países africanos mostram reduzidíssimos números de pessoas infectadas e de óbitos.

Esses contrastes não deixam de ser chocantes e de expor para o mundo que o Brasil, ademais de já ocupar a segunda posição mundial em contaminações pela Covid-19 (678.360 infectados) e terceira em mortes, 36.078, segundo dados de 07/06/2020, nem atingiu aquilo que os cientistas chamam de “pico” da pandemia, que é a fase em que os números de contaminados e mortos chegam ao máximo.

A despeito dos esforços desprendidos pelos governos estaduais, as atitudes e decisões do presidente da República, Jair Bolsonaro, tem sido desastrosas, em especial quando desmontou a gestão do ministro Henrique Mandetta frente ao Ministério da Saúde, apegando-se a tolices como a intransigente defesa da uso do fármaco Cloroquina como solução mágica para a cura da Covid-19, medicamento esse sem comprovação científica de eficácia no tratamento da doença viral e cujo uso pode acarretar graves efeitos colaterais, inclusive morte. E vem impondo um agressivo tratamento político-ideológico ao combate da pandemia, inclusive, com monumentais é desnecessárias trombadas com os governos estaduais, principalmente com aqueles cujos governadores, mesmo direitistas e conservadores (João Dória, de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio de Janeiro), podem ser fortes adversários de Bolsonaro, em 2022.

Claro, aqui Bolsonaro tem espelhado-se no seu ídolo Donald Trump, este que levou o seu país ao primeiro lugar no macabro ranking da Covid-19, com 1.920.061 pessoas infectadas e 109.802 mortes, segundo dados divulgados pela Johns Hopkins University em 07/06/2020. Um monumental desastre para o país mais poderoso e rico do planeta decorrente das estultices do presidente Trump, imitado, repita-se, por seu colega brasileiro. Responderão, decerto, perante o implacável tribunal da História.

Por enquanto, cabe às famílias do mundo inteiro contabilizar perdas, sem ter sequer o sagrado direito de velar seus mortos e lhes dar um sepultamento digno, aquele direito humano da dignidade ao sepultamento do “corpo matável”, retratado em Antígona, a tragédia grega escrita por Sófocles, em que a personagem que nomeia o título da narrativa desrespeita o édito de Creonte, que determinou o vilipêndio do corpo do irmão daquela, chamado Polinice, e que permanecesse insepulto para servir de pasto para animais selvagens e aves de rapina. Antígona deu sepultamento irmão, sujeitando-se à punição imposta pelo tirano, ademais de estabelecer as bases do chamado “jus sepulchri” que condensa o direito de sepultar, de ser sepultado é, sobretudo, de permanecer sepulto. Na pandemia da Covid-19, os familiares e amigos dos que têm sucumbido a ela não podem exercer o primeiro desses direitos, o de sepultar seus entes queridos, para evitar uma maior propagação do letal vírus.

A pandemia Covid-19 cobra um pesado tributo da humanidade, sem discriminar ricos de pobres, homens de mulheres e derivações destes gêneros (gays, lésbicas, transsexuais etc), brancos de negros, pardos ou amarelos. A amolada foice do Coronavírus é “democrática”, embora haja alentados e recentes estudos que comprovam o seu efeito mais devastador e incontrolável nas populações da periferia de grandes cidades, de baixa renda e pouco acesso a bens materiais e serviços públicos essenciais (atenção básica à saúde, educação de boa qualidade, segurança alimentar, direito à segurança e à informação).

Em suma, a pandemia Covid-19 tem imposto a homens e mulheres, em todos os quadrantes do planeta, o inimaginável e terrível pandemônio, esse neologismo inventado por Milton, poeta inglês do século XVII, na obra “O paraíso perdido”, para descrever o palácio de Satã. Aqui, no sentido figurado de balbúrdia, confusão ou tumulto, que é o desassossego que tem trazido às pessoas do mundo todo um dos maiores males ocorridos na História conhecida do gênero humano.  Livrai-nos da Peste São Sebastião!