Por Paulo Afonso Linhares.
Depois de residir por quase uma década em Brasília, onde exercia a profissão de motorista de ônibus urbanos, meu irmão José Afonso, recentemente falecido, e esposa Maria José, fizeram o caminho de volta para Mossoró, com a família aumentada em mais quatro filhos, dois meninos e duas meninas. Como não poderia ser de outra maneira, logo que retornou saiu à cata de emprego. Com o seu currículo estampado na própria Carteira de Trabalho e Previdência Social, a famosa CTPS tão importante para os trabalhadores, ela exibia várias anotações de contratos de trabalho como motorista de ônibus. E não foi difícil conseguir um emprego semelhante, porém, com remuneração bem inferior, de salário-mínimo. Começou logo a trabalhar e chamado ao Departamento de Pessoal lhe foi pedida a CTPS para anotações do contrato de trabalho.
Inopinadamente ele recusou-se a entregar tal documento, para maior surpresa do patrão e outros empregados. Expôs o motivo, exagerado como sempre: “não quero manchar a minha carteira com esse salário mixuruca! ” E continuou por algum tempo no emprego, porém, “sem ser fichado na carteira”, em linguagem popular. Esse episódio me veio à mente com a notícia de que, finalmente, o escritor, poeta e compositor de MPB, Francisco Buarque de Hollanda, iria receber o “Prêmio Camões”, que lhe fora outorgado em 2019, das mãos dos presidentes da República do Brasil e de Portugal, respectivamente, Luiz Inácio Lula da Silva e Marcelo Rebelo de Sousa. Maior honraria literária que se confere a autores lusófonos, o “Camões”, pelos Governos de Portugal e do Brasil, em 1988, no objetivo de fortalecer os laços culturais entre os diversos países de fala camoniana e, por via de consequência, o enriquecimento do patrimônio literário e cultural da Língua Portuguesa.
Desde a sua primeira edição, em 1989, esse significativo prêmio literário teve 34 laureados, a começar com o escritor Miguel Torga e passando pelos poetas, o brasileiro João Cabral de Melo Neto, o moçambicano José Craveirinha, o romancista luso Virgílio Ferreira, a romancista e memorialista brasileira Rachel de Queiroz, seguindo por Jorge Amado e o Nobel de Literatura, José Saramago, além de vários nomes da literatura de língua Portuguesa, criteriosamente escolhidos por um júri de 6 membros, dos quais o Brasil indica 2 e Portugal 2, sendo os outros 2 indicados pelos governos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Aliás, pela qualidade dos agraciados, percebe-se quão criteriosas têm sido suas as escolhas.
Aliás, o mesmo não se pode dizer acerca do Prêmio Nobel de Literatura, conferido pela Fundação que leva o nome de seu instituidor, o empresário e cientista sueco Alfred Nobel, cuja grande contribuição, no campo da Química, foi ter inventado a dinamite em suas diversas variante, além dos acessórios dessa que passou a ser uma grande ferramenta para a engenharia, mas, também, com pernicioso uso militar, registrando 355 patentes e acumulando enorme fortuna através de 90 fábricas de produtos químicos espalhadas pelo mundo.
O Nobel de Literatura tem-se notabilizado mais pelas enormes injustiças que acumula ano a ano, olvidando olimpicamente uma enorme plêiade de gênios da literatura universal, em especial os do chamado Terceiro Mundo, a exemplo do Brasil que jamais emplacou um dos seus, embora o pequeno Chile tenha cravado dois (os poetas Gabriela Mistral e Pablo Neruda).
O prêmio Camões consiste em vultosa quantia pecuniária paga paritariamente pelos dois países instituidores e fixada anualmente por eles – atualmente é de 100.000 euros -, além de um diploma firmado pelos dois chefes de Estado. E foi aí que deu “B.O.” quando Chico Buarque foi escolhido. Com efeito, seria muito difícil uma escolha melhor, dada a sua brilhante atuação em vários domínios artísticos, seja na música, na poesia, no romance e no teatro. Brilhante numas e mediano noutras, contudo, jamais medíocre em qualquer delas: o chefe de Estado brasileiro à época, Jair Bolsonaro, cismou e se recusou a outorgar o diploma e liberar a quantia que cabia ao Brasil, tudo alimentado por ridículo, bolorento e mendaz ranço ideológico somente cabível no círculo do reacionarismo autoritário de raízes nazifascistas que reúne a truculenta extrema-direita rediviva, nestas últimas duas décadas, nestas terras de Pindorama. Na relação entre dois Estados soberanos acerca de um tema, se um não quer, o outro se aquieta; “não rola” como se diz em linguagem de hoje.
Assim, o Estado português manteve-se em obsequioso silêncio, por amor da liturgia político-diplomática, algo que jamais passou pela diminuta cabeça de Jair Bolsonaro.
Por seu turno, o grande Chico Buarque, patrimônio intangível da civilização lusófona, manteve “cool”, pois, sábio, sabia que enquanto o mundo gira a Lusitana roda… E não a se referir àquele meio bobo anúncio comercial tão conhecido nos dois lado do velho Atlântico, mas, como a História é caprichosa e faz imanente o tão bem traduz trecho da apreciada canção de Geraldo Vandré: “Marinheiro, marinheiro/ Quero ver você no mar/ eu também sou marinheiro/ Eu também sei governar/ Madeira de dar em doido/ Vai descer até quebrar/ É a volta do cipó de aroeira/ No lombo de quem mandou dar/ É a volta do cipó de aroeira/No lombo de quem mandou dar”. Sim, chega o ano de 2022. Eleições (quase) gerais no Brasil.
Preso injustamente por um juiz parcial e incompetente, mancomunado procuradores federais de igual índole, apedrejado por uma súcia raivosa, na imprensa, redes sociais ou fora delas, sobretudo, perseguido pelo governo Bolsonaro, que se revelou como um dos mais corruptos da história republicana, sobretudo por montar uma megamáquina de distribuir verbas públicas de um tal “orçamento secreto”, que ao fim e ao cabo financiou as eleições de parlamentares e governadores ligados a Jair Bolsonaro, cuja candidatura ganhou, por esses enormes abusos dos poderes econômico e político, ao absoluto arrepio da legislação pátria. Apesar de tudo, faltaram mais de dois milhões de votos a Bolsonaro e Lula venceu. Enfim, foi mesmo “…a volta do cipó de aroeira/No lombo de quem mandou dar”.
Envergando a faixa presidencial e com amplo apoio da sociedade brasileira, maior ainda do que os 51 milhões de eleitores que sufragaram a sua eleição, Lula tenta reconstruir, interna e externamente, a imagem do Brasil. É bem verdade que, nalguns momentos de empolgação ou de irrefletido improviso, tem dado alguns escorregos o que, todavia, não compromete o conjunto das realizações político-administrativas encetadas nestes mais de cem dias de governo. Entre tantas coisas já realizadas e antes prometidas, o presidente Lula abraçou como propósito pessoal o desagravo ao laureado Chico Buarque e ao Estado português, pela inadmissível e gratuita desfeita perpetrada não apenas em face destes, mas, dos milhões de cidadãos cuja língua-mãe é o português de Camões.
E foi bonita a festa, pá: no belíssimo Palácio Nacional de Queluz, em Sintra, berço de tantos reis e rainhas lusitanos, inclusive do fundador do Estado brasileiro, Dom Pedro I. Enfim, a desfeita foi redimida nos belos discursos dos chefes de Estado dos países outorgantes da honraria, porém, mais belas foram as palavras e singela a oração de Chico Buarque, da qual, por imposição de espaço e de estilo, cito o mais significativo, quando ele lembra que, após quatro anos de espera, afirmou que, “…no que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás.
Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo”.
Que dizer disso? Inteligência puríssima e líquida, adornada de refinado humor. No íntimo foi bom, imagina Chico, que Bolsonaro, aboletado na curul presidencial a comer franco com farofa esparramada pelo bucho abaixo, tenha cismado em não assinar o diploma e liberar o valor pecuniário que caberia ao Brasil, no “Camões”, embora, na arguta visão do literato agraciado, apenas o Bozo“…teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. ”
Induvidoso que a emoção mais legítima fê-lo esquecer que a fineza do troglodita Bolsonaro não é tão rara assim: mais fineza teve ele quando, batido nas urnas e choramingando como um meninozinho de má índole, resolveu não transmitir a faixa presidencial ao empossado presidente Lula, que aproveitou o muxoxo do Jair para subir a rampa do Palácio do Planalto, pela terceira vez, todavia, dessa feita, acompanhado de uma expressiva representação do povo brasileiro, inclusive o vetusto cacique Raoni, tudo em imagens de rara beleza levadas ao mundo.
Raríssima fineza, mestre Chico, foi também o Ogro da Cloroquina não sujar a faixa presidencial que simboliza a magistratura suprema do Estado brasileiro, para usar o linguajar de Cícero em tempos e glórias idos no mundo republicano na velha Roma. Nas monarquias, o chefe de Estado, rei, imperador, czar ou sultão, geralmente usa um cetro e uma coroa como representativos do seu poder. Já nas repúblicas, a materialização desse poder fixa-se numa estreita faixa de pano, geralmente pintada com as cores nacionais e adornada pelo brasão de armas.
Algo assim bem singelo, sem ouro nem prata ou de outros finos metais e pedra preciosas. No dia seguinte celebrar-se-ia a Revolução do Cravos, de 25 de abril de 1974, que arrancou a nação portuguesas das garras de uma sanguinária ditadura protofascista de 42 anos, sobre a qual Chico Buarque, a quem o próprio Luiz Vaz de Camões ou Fernando Pessoa, os dois maiores vates das terras lusitanas, gostariam de chamar “irmão”, escreveu belíssima canção, no trecho em que vaticina: “Sei que há léguas a nos separar/ Tanto mar, tanto mar/ Sei, também, quanto é preciso, pá/ Navegar, navegar/ Canta primavera, pá/ Cá estou carente/ Manda novamente/ Algum cheirinho de alecrim”. E o “cheirinho de alecrim” somente chegou por aqui em 1988, quando dada à luz a Constituição Cidadã que encerrou, cá também, as trevas de mais de duas décadas de sangue, suor, desespero e lágrimas.
Agora, ao perceber o ex-presidente Bolsonaro a (quase) vislumbrar o sol nascer quadrado pelas tantas piruetas que aprontou, certamente Chico Buarque, com um belo diploma debaixo do braço e 100 mil euros no bolso, vai cantarolando pelas ladeiras da velha Lisboa: “…… Quando chegar o momento, esse meu sofrimento/ Vou cobrar com juros, juro/ Todo esse amor reprimido, esse grito contido/ Este samba no escuro/ Você que inventou a tristeza/ Ora, tenha a fineza de desinventar/ Você vai pagar e é dobrado/ Cada lágrima rolada nesse meu penar”.
* PAULO AFONSO LINHARES é doutor em Direito, advogado, professor universitário aposentado e diretor-presidente da Rádio Difusora de Mossoró.