A politização do futebol em meio à pandemia

Articulação pelo retorno do Carioca durante pandemia que já matou mais de 75 mil e decreto sobre direitos de transmissão estreitam laços entre Bolsonaro e diretoria do Flamengo. Mas há também vozes críticas no esporte.

    

FlamengoJogadores do Flamengo celebram título do Carioca, apelidado de Covidão 2020

O Flamengo conquistou, nesta quarta-feira (15/7), seu 36º Campeonato Carioca. O título, num Maracanã sem público, teve sabor especial para o presidente Jair Bolsonaro, que divulgou foto assistindo à final com o uniforme rubro-negro. O presidente da República se engajou pessoalmente pelo retorno “solo” do torneio, concretizado em meados de junho, mesmo com a pandemia fora de controle no Rio. O torneio acabou apelidado pelos cariocas de Covidão 2020.

Bolsonaro aproveitou a convergência de interesses na pandemia para estreitar laços com a diretoria do clube rubro-negro, uma aproximação que teve início ainda no ano passado. Preocupado com o fluxo de caixa, o clube de maior visibilidade e investimento do Brasil se tornou um aliado importante do presidente em sua agenda negacionista, mesmo a pandemia de covid-19 já tendo atingido mais de 2 milhões de brasileiros e causado a morte de mais de 75 mil.

Enquanto a bola rolava no Rio, Bolsonaro e a diretoria do Flamengo continuaram a se articular em Brasília. Como resultado foi editada a Medida Provisória nº 984, que alterou as regras dos direitos de transmissão dos jogos. Reivindicada pelo Flamengo e por outros clubes, a mudança teve como maior afetado o Grupo Globo, um inimigo declarado do presidente.

A campanha pelo retorno do Carioca, liderada pelo rubro-negro com o apoio de Bolsonaro, dividiu os rivais. Presidido por um médico, o Vasco da Gama aderiu à iniciativa, enquanto Fluminense e Botafogo se opuseram. Derrotado na final, o tricolor das Laranjeiras teve um mês a menos de preparação que o Flamengo, pois só retomou os treinos quando esgotou os esforços para reverter a decisão judicialmente. A posição assumida pela diretoria teve apoio do elenco.

“O Maracanã tem um hospital de campanha dentro do complexo. A gente fazer um gol e ter uma pessoa morrendo do lado é, no mínimo, estranho, sem humanidade”, afirmou o volante Hudson na volta das atividades. Nesta quinta-feira, ele e outros jogadores do Fluminense se afirmaram campeões morais, ressaltando a disputa de seis jogos em 18 dias, com breve preparação de nove dias após três meses de inatividade.

Apesar do posicionamento crítico de atletas do Fluminense, Bolsonaro contava com apoios significativos no mundo da bola, e isso já antes de assumir a Presidência da República. Nas eleições de 2018, o Athletico Paranaense trocou as cores preta e vermelha de seu uniforme pelo amarelo, em apoio ao então candidato. Vitorioso nas urnas, ele participou da premiação do Campeonato Brasileiro de 2018, vencido pelo Palmeiras.

Já no Planalto, Bolsonaro manteve o tour por estádios, acompanhado de seus filhos ou aliados políticos. No auge da crise que atingiu o então ministro da Justiça Sergio Moro, por mensagens vazadas pelo site The Intercept, o presidente levou o ex-juiz a um jogo do Flamengo no Mané Garrincha, em Brasília, onde ambos vestiram a camisa do clube. Segundo levantamento do jornal O Globo, Bolsonaro havia recebido 38 camisas de clubes e seleções até novembro do ano passado.

Brasilien Super Cup - Flamengo v Athletico | Jair BolsonaroBolsonaro e Moro acompanham partida do Flamengo em Brasília

A atual utilização do futebol para fins de legitimação política só encontra paralelo na ditadura militar, durante o governo de Emílio Garrastazu Médici, maior referência de Bolsonaro na política. Além de ter utilizado a seleção tricampeã em 1970 como instrumento de propaganda, o ditador ia com frequência ao Maracanã e outros estádios. Ao contrário de Bolsonaro, porém, tinha fidelidade às cores do Flamengo – há registros documentais de sua presença em um jogo do rubro-negro com apenas 8 mil pessoas no Maracanã.

Esse amplo apoio de jogadores, cartolas e técnicos a Bolsonaro – caso de Renato Portaluppi, do Grêmio, e Luiz Felipe Scolari – chama a atenção por não ter precedentes no período democrático. A última grande mobilização havia sido a Democracia Corinthiana, movimento liderado por Sócrates, Casagrande e Vladimir no clube paulista. Além de endossar o clamor por eleições diretas no fim do regime, o grupo adotou um sistema decisório interno com pesos iguais, do roupeiro ao presidente.

Torcidas rivais juntas contra o presidente

Mas nem tudo é apoio a Bolsonaro. Um ator fundamental entre os críticos é a torcida organizada Gaviões da Fiel. Durante a pandemia, ela participou de manifestações pela democracia ao lado de grupos rivais nas ruas de São Paulo. Pelo histórico de conflitos entre as torcidas, a mobilização causou surpresa. Os protestos coincidiram com a emergência de levantes contra o racismo em todo o planeta, inclusive no Brasil, no fim de maio.

As manifestações das torcidas foram as primeiras de rua contra o presidente durante a pandemia. Até então, somente os seus simpatizantes haviam rompido o isolamento social para participar de atos a favor do fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal e contra medidas de distanciamento social. “O futebol é um espaço privilegiado para travar combates a favor de determinados valores”, observa o antropólogo José Florenzano, da PUC-SP.

Brasilien Protest Fussballfans von der Gavioes da FielEm São Paulo, torcidas organizadas fizeram protestos contra o governo federal

Com experiência em editorias de política, o apresentador André Rizek, do canal SporTV, costuma repetir uma frase do técnico César Menotti, campeão da Copa de 1978 com a Argentina: “Aquele que só de futebol sabe, nem de futebol sabe”. O jornalista defende que o esporte não seja encarado como uma bolha e destaca a velocidade das mudanças em várias modalidades esportivas.

“Em muito pouco tempo, a crítica que era dirigida aos atletas que se posicionavam passou a ser endereçada àqueles não se posicionam. Isso ficou claro na cobrança aos pilotos que não aderiram ao protesto do Lewis Hamilton pelas vidas negras na Fórmula 1. É um cenário muito diferente do que enfrentou o Colin Kaepernick em 2016”, analisa Rizek, em referência ao jogador de futebol americano que se ajoelhava durante o hino nacional dos EUA e se aposentou após sofrer boicote da NFL.

A Fifa, entidade que dita os rumos do futebol em nível mundial, orientou recentemente os árbitros a não punirem atletas que se manifestassem contra o racismo no retorno dos jogos após a pandemia. A recomendação contraria o histórico de desestímulo a manifestações políticas dentro das quatro linhas pela organização.

No início de junho, o grupo Esporte pela Democracia lançou um manifesto crítico à banalização das vidas negras e às ameaças ditatoriais no país. Articulada pelo ex-jogador e comentarista Casagrande, líder da Democracia Corinthiana, a iniciativa reúne nomes influentes de várias modalidades esportivas, como Gustavo Kuerten (tênis), Ana Mozer (vôlei) e os futebolistas Juninho Pernambucano, Grafite e Raí.

Autor do livro Afonsinho e Edmundo – A rebeldia no futebol brasileiro, Florenzano contesta a tese segundo a qual os jogadores brasileiros seriam historicamente alienados. Nos anos 1920 e 1930, poucas décadas após a abolição da escravatura, atletas negros de origem pobre, como Fausto e Leônidas da Silva, o Diamante Negro, contestaram a relação de mando e obediência estabelecida entre técnico e jogadores no futebol. “É extraordinário como esses atletas reivindicam o saber no exercício da atividade, batendo de frente com dirigentes brancos em clubes de elite”, avalia o professor da PUC-SP.

“Essa rebeldia é atualizada nos anos de 1960 pelo Afonsinho, de forma mais elaborada e politicamente consciente. Na década de 1970, o Paulo Cesar Caju desmistifica a ideia de democracia racial no Brasil e, nos anos 1990, temos os últimos românticos: Romário, Edmundo e Djalminha. São atletas que questionavam a normatização dentro do futebol”, comenta.

Com mais informação www.dw.com